Na Quinta de série de hoje falo da docusérie O caso Celso Daniel produzida pela Escarlate e disponível na Globoplay. Criada por Marcos Jorge, Bernardo Rennó, Gisele Vitoria e Joana Henning; possui direção de Marcos Jorge; e roteiro de Marcos Jorge e Bernardo Rennó. O elenco das simulações conta com a presença do ator Tuca Andrada. A série possui 8 episódios, de 50 minutos cada.
A produção discute o caso policial e político mais polêmico do século XXI no Brasil. Celso Daniel, eleito prefeito de Santo André por três vezes, foi morto, aos 50 anos, em 2002, depois de dois dias sequestrado. No dia 20 de janeiro esse caso completou 20 anos, ganhando uma série documental, com o projeto iniciado em 2017.
O sequestro e assassinato do ex prefeito é rodeado de diversas teorias, segredos e dúvidas que ainda são levantadas após 20 anos. A série traz à tona a discussão sobre o que pode ter acontecido, ou não, na época. São revelados, à cada episódio, detalhes da investigação da morte de Celso. O petista foi sequestrado após sair de um jantar em um restaurante em São Paulo com o assessor Sérgio Gomes da Silva, o "Sombra". Na volta para o ABC, o carro onde estavam foi abordado por bandidos armados, que levaram o prefeito - Sérgio conseguiu escapar. Dois dias depois, o corpo de Celso foi encontrado em uma estrada próxima a Juquitiba, na grande São Paulo, com sete tiros.
Baseada em ampla pesquisa e farto material documental, a série trouxe mais de 50 entrevistas com personagens relevantes para a história como familiares, colegas de partido, jornalistas, advogados, além de delegados e promotores. 100 horas de materiais foram gravados, sendo que as entrevistas foram reduzidas para 30. Entre os entrevistados estão: o ex presidente nacional do PT, José Dirceu; e Gilberto Carvalho, ex ministro chefe da Secretaria Geral da Presidência (2011 - 2015) no governo de Dilma Rousseff (2011 - 2016) e ex secretário de comunicação de Santo André. Também há depoimentos do ex presidente Fernando Henrique Cardoso; da senadora Mara Gabrilli (PSDB - SP) e do ex senador Eduardo Suplicy. Também foram coletadas gravações da campanha de 2002, reportagens e animações para ilustrar os relatos. A produtora Joana Henning falou mais do projeto:
"Nosso foco foi esclarecer e montar uma história que desse conta dos fatos reais, dos fatos oficiais e das experiências vividas pelos personagens."
A trama é bem amarrada e construída. Não há um narrador, sendo que cada episódio é construído com imagens de arquivo, simulações animadas baseadas em autos processuais e depoimentos, entrevistas, além de investigadores, órgãos oficiais e até jornalistas que cobriram a história. A história é contada de uma forma proposital para gerar inúmeras dúvidas, já que muitas versões do sequestro e assassinato são apresentadas. O caso Daniel é um caso ambíguo, que caminha para duas versões lógicas. Mesmo com a apresentação de diferentes pontos de vista, a série deixa claro a versão que se acredita ser correta, principalmente por conta do posicionamento político da Globo. Henning fala mais sobre isso:
"O assassinato por si só já é um tema delicado, um assassinato emblemático como esse era muita responsabilidade. Essa é uma história com muitas opiniões, especulações e versões, então a gente foi atrás de todas as pessoas que trabalharam diretamente com o caso. A gente fez muitas entrevistas em off pra compreender a trama e começar a destrinchar."
Inicialmente, seria um filme, mas o tamanho da história o transformou em série com o intuito de cobrir todos os lados e detalhes do caso, baseado em dois inquéritos policiais, uma força-tarefa do Ministério Público, uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), um julgamento, uma anulação de processo e sete condenações. Joana explicou sobre isso em detalhes:
"A gente entendeu que tinha muito o que pesquisar, ampliou ainda mais e tem uma curiosidade nesse caso porque, quando a gente fala várias investigações, a gente tem diversas investigações formais e informais, muitas fontes têm acervos sobre Celso Daniel em casa. A gente se deparou com um material muito rico. Não só de depoimentos, de experiências trocadas, de vivências, como também arquivo, dos processos."
Após 20 anos, o caso ainda não foi totalmente solucionado. Esta história tem perpassado a história política e social do país, gerando inúmeros debates. O intuito da série, nesse sentido, é mostrar os fatos reais, os dados oficiais e as experiências vividas pelos personagens. A história é muito passional, com muita dor, requintes de crueldade, para além da morte de um ente querido ou de um gestor público muito admirado.
Eis os números que resultaram nos 8 episódios da produção: 2 mil páginas estudadas de processo judicial, 10 idas ao Fórum de Santo André, 20 visitas à cidade paulista para gravação de imagens e entrevistas, 50 pessoas entrevistadas e 100 horas de material bruto, além de 1000 testes de COVID-19 utilizados.
Episódios
Cada episódio conseguiu clarear, abrir camadas, trazer informação checada para o público e preencher lacunas. O caminho das perguntas foi refeito e algumas respostas foram encontradas. As três perguntas que são abordadas na série, são as seguintes: Quem matou Celso Daniel?; Havia corrupção na prefeitura de Santo André?; E há alguma relação entre a corrupção e o assassinato? As duas primeiras encontraram uma resposta satisfatória, e a terceira é um mistério até os dias de hoje.
As descobertas podem te agradar, dependendo da sua orientação política, enquanto outras podem parecer tendenciosas demais, mas isso não é problema já que esse caso é sinônimo de contradições, mistérios e discussões meramente políticas.
Os episódios foram os seguintes: Um crime abala o Brasil; A investigação; O dia do caçador; Em busca do elo perdido; Correndo atrás de sombras; Arquivo morto; O fim do mundo; e Quem matou Celso Daniel. Falo de cada um dos capítulos a partir de agora.
O primeiro apresenta o sequestro e a morte de Celso Daniel que provocam uma série de especulações, tanto na esfera criminal como política. A única testemunha do crime, Sérgio Gomes, entra em contradição.
A investigação traz o início dos trabalhos policiais. Um local onde Celso Daniel esteve é localizado e vários suspeitos são identificados. Sem explicar as contradições, Sérgio Gomes passa de vítima a suspeito.
O dia do caçador apresenta a confissão dos primeiros sequestradores presos. Tal confissão é contestada pelos irmãos de Celso. Os promotores de Santo André recebem denúncia envolvendo Sérgio Gomes e decidem investigar.
O quarto episódio traz a tese de que a fuga de Dionísio do presídio, num helicóptero, está relacionada com a morte de Celso. Mas uma reviravolta deixa o caso ainda mais misterioso.
Correndo atrás de sombras trata de uma briga que volta a distanciar promotores e polícia. A partir de investigação própria, promotores denunciam Sérgio Gomes como mandante da morte de Celso. Sérgio é preso.
Arquivo morto traz várias mortes de pessoas ligadas ao caso, um dossiê e uma denúncia de tortura, que reacendem suspeitas de crime de mando. Os irmãos Daniel conseguem que as investigações sejam reabertas.
Em O fim do mundo, o Escândalo do Mensalão, a CPI dos Bingos e a ligação entre a corrupção em Santo André e a morte de Celso são tratados. Sérgio fica cara a cara com os sequestradores.
No último episódio, Quem mato Celso Daniel, os sequestradores vão à julgamento. A relação de Celso com os irmãos ganha um novo viés. Entrevistados avaliam porque o caso dura tanto tempo e dizem quem matou Celso Daniel.
As três perguntas
A resposta à pergunta "Quem matou?" foi dada pela polícia de São Paulo. As investigações revelaram uma quadrilha de sete integrantes, chefiados por Ivan Rodrigues da Silva, apelidado de 'Monstro'. Os suspeitos foram interrogados, confessaram o crime e, com poucas variações, contaram a mesma história.
Já a segunda também tem resposta: Sim, havia corrupção na prefeitura de Santo André - um caso raro de caixa dois que deixou prova material. Pouco tempo depois do crime, a empresária do setor de transportes Rosângela Gabrilli contou ao Ministério Público que a prefeitura de Santo André cobrava uma "caixinha".
Sobre a terceira pergunta: dado que a quadrilha foi identificada e a corrupção comprovada, haveria relação entre as duas coisas? Em 2003, o Ministério Público levantou a tese de que haveria um mandante para o crime, e este seria Sérgio Gomes da Silva. Segundo essa teoria, Sérgio contratou a quadrilha de "Monstro", porque Celso Daniel queria acabar com o caixa dois em Santo André, o que prejudicaria seus negócios. A teoria não se confirmou 100%.
Enredo, roteiro, edição e entretenimento
A pesquisa e o material jornalístico está complexo. Das imagens de arquivo aos depoimentos, tantos anos depois, de personagens importantes e que estiveram envolvidos com o crime ou com sua investigação - tudo está presente.
Por outro viés, há uma necessidade de deixar a minissérie mais envolvente e criativa, com mais entretenimento. O caso Daniel tem o diferencial de utilizar dramatizações com atores até reconstituições em animação. Esses recursos ajudaram a trama a ganhar uma coerência como storytelling. Talvez até falte unidade conceitual com o uso dessas técnicas, mas com certeza a narrativa ficou mais dinâmica e não presa ao jornalismo raiz.
O fato é que desde o sucesso da série documental criminal Making a Murderer, documentários investigativos tiveram a inserção de elementos a fim de transformar uma narrativa maçante em algo mais dinâmico, mais agradável de acompanhar. O grande desafio é equilibrar informação e entretenimento, que pode aproximar ou afastar o público.
Abertura
A abertura da série possui um trabalho audiovisual muito incrível e bonito. Com a música Punga da banda de rap Aláfia, ela impressiona por conta das artes e montagens visuais. Ela apresenta imagens do crime contra Celso Daniel e até mesmo imagens de políticos petistas, como Dilma Rousseff e Lula. Também há a emblemática imagem da estátua da justiça de olhos vendados. A música fala de política, principal assunto da série e caiu como uma luva. A letra ainda conta com uma crítica ao presidente Jair Bolsonaro. Escute a música:
Crítica
O caso Celso Daniel é uma série primorosa e um dos grandes trunfos do jornalismo investigativo, criminal e político. À cada capítulo, uma nova reviravolta e um ponto de vista. A série consegue prender sua atenção, por mais que você já saiba da parte noticiosa e dos seus desdobramentos. É uma produção criativa e ousada por misturar depoimentos, animação e reconstrução de fatos por meio da dramaturgia.
A série tem muito da prática jornalística no ar. O material documental e de arquivo foram bem selecionados e há uma preocupação em exercer a ética e a boa conduta jornalística.
É visível a busca pela informação acima da opinião. A equipe de produção descobriu coisas surpreendentes, além das engenharias da política brasileira. O mérito da equipe foi o de mostrar os fatos de forma precisa e de diferentes maneiras, seja por meio de entrevistas com os protagonistas da história e da investigação, com a família, companheiros e adversários políticos.
É uma série polêmica, que criou um mal estar entre jornalistas e artistas da Globo Série. Por que exibí-la em pleno ano eleitoral? Certamente há motivos por trás. Poucas vezes um crime foi tão investigado quanto o assassinato de Celso Daniel, daí a importância e o peso da produção.
A série busca desvendar o crime e desatar os fios da investigação, mas o objetivo final é mais confundir do que dar um veredito oficial. Assim, ela não vem para esclarecer, mas para confundir. É o público que assiste que deve tirar suas próprias conclusões. Recomendadíssima! J-J