sábado, 2 de junho de 2018

Clipe 'This is America' de Childish Gambino é um retrato da nossa realidade que insistimos em negar



Esta é a América! Esse é o título do clipe This is America em português e que foi lançado no início do mês passado (5 de maio) pelo cantor Donald Glover, também conhecido como Childish Gambino. A produção é uma crítica acentuada à política, armamento, lei de privilégios, racismo e violência exacerbada que não acontece somente no States, mas no mundo inteiro. Por mais que Childish tenha retratado os EUA, não é difícil imaginar que os outros países passem pelos mesmos dilemas e mazelas. Desse modo, This is America poderia ser facilmente modificado para This is World

O clipe foi dirigido pelo japonês Hiro Murai, juntamente com a coreógrafa Shierrie Silver, especialista em dança africana. Ele é cantado e encenado por Donald Glover (Childish Gambino) que é ator, roteirista, humorista, músico e rapper. 

A produção, de quatro minutos, leva à discussões de horas e horas dos assuntos tratados. Ela é cheia de mensagens, referências, críticas - que passam desapercebidas pela maioria das pessoas. É preciso um olhar clínico, responsável e atento ao que tem acontecido no mundo para entendê-la. Tudo é intencional e possui um embasamento na realidade. Assista:






Conseguiram entender a força, mensagem e crítica do clipe? Ele tem sido analisado na internet por críticos e pessoas comuns à exaustão. Pretendo ressaltar alguns tópicos da obra, mas sem ser repetitivo.


Estética do clipe


Ele traz filtros frios e apagados, com cenários em cores escuras como preto, cinza, grafite e branco. Apesar do clima alegre da melodia, a sensação e atmosfera é de tristeza. São pouquíssimas às vezes que uma cor quente aparece em cena. O vinho, por exemplo, aparece em uma cena trágica (1:40) e em um pano para guardar uma arma de fogo (0:55).

Quase toda a produção é composta por dois planos (o primeiro, com o cantor em foco) e o segundo (às vezes o terceiro) - com alguma ação acontecendo. Há, quase sempre, um plano escondido ou sublimar na cena de forma proposital. 



Ideia


A principal ideia do clipe é passar a mensagem que a sociedade atual não se importa com seus próprios problemas, relativizando-os e mudando o foco para o entretenimento, diversão, autopromoção e aparência. 

Desse modo, This is America é cheio de cenas fortes, mas que aparecem como meros detalhes, no segundo/terceiro plano e que a maioria não percebe ou não dá o mínimo valor. Por várias vezes, cenas chocantes estavam no primeiro plano, como quando o cantor executa um homem negro (0:51), mas conseguiu-se o mesmo efeito, já que a música é dançante e o cantor e figurinistas remexiam seus corpos. 

Até que ponto o suicídio, massacre, racismo, violência urbana nos choca? Brilhantemente, os idealizadores mostraram que o ponto é quase nulo, uma vez que essas situações tornam-se cada vez mais banais e sem importância pela própria sociedade que as vive e as sofre. 

O clipe, portanto, traz a verdade da nossa realidade para a superfície, mesmo que por meio de detalhes, mensagens subliminares e em segundo plano, até porque tem o intuito de gerar choque, mas mostrando para as pessoas: "Olha, isso é grave, terrível, mas você não se importa e nem liga. Então, toma aqui um entretenimento e diversão, enquanto ali do lado uma pessoa se suicida". 


Melodia/Letra


This is America possui um ritmo envolvente e dançante, que mistura ritmos africanos, Trap norte-americano e mumble rap, além de música de coral negro. A escolha de cada melodia tem o intuito de apresentar, sonoramente, cada classe, raça ou discussão tratada na música/clipe. O negro está representado nos ritmos e danças africanos, bem como no gênero de coral americano. Por outro lado, não por acaso, o Mumble rap está inserido na melodia por ser um gênero de letras de baixo calão e sem sentido que exaltam a violência - esta amplamente apresentada no clipe.

A letra, por sua vez, apresenta a América, além de falar das características dos americanos. É claro que é uma letra que serviria para qualquer ser humano, pois os assuntos tratados são bem comuns. Ela cita os problemas sociais, mas com sarcasmo e sempre desviando o foco do que realmente importa. Acompanhe um trecho: "We just wanna party Party just for you We just want the money Money just for you I know you wanna party Party just for me Girl, you got me dancin' Dance and shake the frame" (Nós só queremos festejar Festejar só pra você Nós só queremos o dinheiro Dinheiro só pra você Sei que você quer festejar Festejar só pra mim Garota, você me fez dançar Dance e agite o corpo).

Além disso, os versos refletem como o negro é tratado pela sociedade, lei e policiais, sem privilégios, apenas com racismo, preconceito e discriminação. Acompanhe: "You just a black man in this world You just a barcode, ayy You just a black man in this world Drivin' expensive foreigns, ayy You just a big dawg, yeah" (Você é apenas um cara negro neste mundo Você é apenas um código de barras, ayy Você é apenas um cara negro neste mundo Dirigindo pra gringos ricos, ayy Você é apenas um grande irmão, sim).

Ao colocar a letra ao lado do clipe, percebe-se como elas se complementam e como aquela passa a fazer mais sentido. A produção só reforça a letra que já é impactante. 



Referências


São inúmeras as referências encontradas no clipe. Elas são baseadas em notícias, na história, o que o deixou mais realístico e verossímel. Separei alguns símbolos, ícones e referências. Veja:


Travor Martin




Logo no início, um homem negro senta-se em uma cadeira e toca violão (0:13). Ele se assemelha muito com Tracy Martin, pai do jovem Trayvor Martin assassinado por ser negro e usar um casaco com capuz em uma loja de conveniência por um vigilante nos EUA. Donald encena o episódio com frieza à partir de 0:47


Uncle Ruckus




Aos 0:41 segundos o cantor faz uma expressão em referência ao personagem Uncle Ruckus da animação The Boondocks - um negro preconceituoso com negros, que diz que eles são amaldiçoados e nega sua raça. 






Ministrel Jim Crow




A partir de 0:47, o cantor faz essa pose ao executar o jovem Trayvor em referência ao personagem ministrel Jim Crow, idealizado por Thomas D. Rice em 1832, onde ele utilizava blackface (veja o post sobre do JOVEM JORNALISTA) para reproduzir preconceitos da época, mas ridicularizando os negros. 





Peito estufado




Em vários frames, como o de 0:37, Childish estufa o peito fazendo referência aos imigrantes europeus quando desbravaram a América e outros continentes, como a África. De forma subliminar, há uma crítica a supremacia branca sobre as demais raças.  



Massacre da Igreja de Charleston (2015)





A partir de 1:40 há referências aos corais norte-americanos negros e ao massacre ocorrido em 2015 na Igreja de Charleston - em que um atirador (supremacista branco) executou 9 pessoas negras. 



Mundo tecnológico




Em 2:28 o clipe alude às redes sociais e à tecnologia e mostra como as pessoas não se importam com tragédias e preferem filmar danças nas ruas, enquanto o "couro come" do outro lado na cena. Donald mostra como a sociedade está preocupada em postar situações de alegria nas redes, ao invés de se importar com a realidade cruel ao seu redor. 




A morte vem à cavalo




Em 2:36, em segundo plano, a morte vem em um cavalo branco em uma clara referência ao livro bíblico de Apocalipse. Ela representa a morte que guia a viatura policial ao encontro de negros, desfavorecidos pela lei. 



Modelos de carros durante a segregação racial nos EUA




A partir de 3:08 vários carros antigos fazem parte da cena em alusão ao período de segregação racial nos EUA. 







Polícia de NY





Em 3:50 o cantor é perseguido por policiais após fazer uso de maconha (2:53). Os uniformes deles (preto e branco) são idênticos aos usados pela polícia de Nova Iorque. 



A calça do cantor





Durante todo o clipe Donald usa uma calça cinza que era utilizada pelos combatentes durante a batalha americana pela confederação. Esta é símbolo dos confederados americanos que são anti-negros, anti-indígenas e anti-imigração. Achei genial a utilização desse figurino, pois converge para os assuntos tratados no clipe, como racismo. 

Veja a calça que os combatentes usavam durante a Guerra Civil americana e compare com a imagem acima:





Armamento




Durante todo o clipe a questão armamentícia é discutida. Os revólveres são usados como solução de problemas, vistos como deuses e tratados com carinho, respeito, cuidado. O artista critica as armas ao dizer que elas tornaram-se objetos de culto na sociedade americana e mundial. Foi a posse de armas que abriu espaço para que um supremacista branco invadisse uma igreja e executasse várias negros. Ao permitir seu uso, não se mede as consequências, como a violência urbana e injustiças sociais e raciais - o clipe toca exatamente nessa ferida. O artista mostra como a legalização das armas pode ser perigosa. 



Apropriação cultural




Donald mostra que a sociedade americana também se apropria de várias culturas, estilos musicais e costumes, ao retratar jovens copiando danças africanas. A mistural cultural é algo bastante presente nos dias de hoje. 



Racismo e estereótipos





O clipe discute a problemática do racismo contra negros de forma chocante, dolorosa e emocionante. Por causa da raça, pessoas são assassinadas, mortas e injustiçadas e poucas pessoas ligam para isso. Criticamos a atitude do vigilante ao matar Trayvor por usar um casaco com capuz, mas já parou para pensar como agimos quando um negro se aproxima de nós?

Ainda nos dias de hoje, Donald mostra como a sociedade ainda é racista e influenciada por estereótipos, que muitas vezes não condizem com a realidade. Não é só negro que pratica crimes, mas também brancos; não são somente negros que usam maconha, mas pessoas de outras raças. 

A cena em que Donald acende um baseado (2:56) e logo é perseguido pela polícia (3:37) demonstra como ainda temos uma visão, um estereótipo de negro e agimos com dois pesos e duas medidas. Matar um homem negro? Tudo bem. Massacrar um grupo inteiro de pessoas negras? Fichinha. Agora, um negro fumar uma maconha, é crime; um branco, empoderamento. Tem algo de errado com a sociedade né? Mas que bom que Donald viu isso e fez questão de jogar na nossa cara!



Suicídio



Quem liga para o sofrimento do outro ou para alguém que se suicida hoje em dia? Poucas pessoas. A partir de 2:13 um suicídio acontece no fundo da cena enquanto Donald e um grupo de adolescentes dançam e outras pessoas não estão nem aí. Donald soube retratar com realismo que a sociedade não se choca com tragédias e a dor do outro, preferindo se entreter, se divertir e tirar selfies



Violência urbana


O clipe mostra como estamos habituados com a violência urbana, ao trazer várias cenas pesadas amenizadas por danças e passinhos. Quem se choca hoje em dia com notícias de assassinatos, massacres e homicídios? Elas já se tornaram banais. Em meio à um cenário de violência, estamos cada vez mais insensíveis e frios. 



Conclusão


O clipe This is America é um retrato da nossa realidade que insistimos em negar. Ele é riquíssimo de sentidos e detalhes, tanto que, com certeza, esqueci de falar algo. Além disso, trata de assuntos atuais, polêmicos e críticos e apresenta uma mensagem contra o preconceito, injustiças e desigualdades sociais. Ao final, o clipe nos pergunta: Até quando você fechará os olhos para o preconceito? Até quando não se importará com a dor do outro? Até quando será racista? Até quando apoiará a legalização de armas? Até quando não lidará com situações críticas e difíceis? Até quando buscará entretenimento e prazer, enquanto o mundo acaba à sua volta? Até quando?! J-J


Por: Emerson Garcia

13 comentários :

  1. Gostei muito da análise do clipe, ele é um tapa na cara da sociedade. Eu vi uma referência a ele nesse post, https://www.instagram.com/p/BizNYMinTlD/?hl=pt-br&taken-by=pantop_
    aí depois vi no youtube e parei pra assistir, é chocante.

    rasgadojeans.blogspot.com

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  2. Oi Emerson! Tudo bom?
    Vc montou uma crítica muito bem construída, eu não conhecia essa música.
    Obrigada pelo comentário lá no blog.
    Volte sempre!

    ~ miiistoquente

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    Respostas
    1. Obrigado, Thamiris. Procurei traçar uma linha de raciocínio e destacar pontos não tão falados.

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  3. Que postagem excelente Emerson! Um amigo meu havia me mandado esse clipe, mas confesso que de começo nao tinha entendido bem a ideia. Agora com esses esclarecimentos vejo que estava bem claro. Gostei bastante do seu post! Os Delírios Literários de Lex

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    Respostas
    1. Que bom que gostou, Aléxia. Esse é um vídeo bem reflexivo e crítico.

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  4. Não conhecia a música e nem mesmo vi o clipe,mais realmente a analise deste clipe foi bem detalhada.

    www.paginasempreto.blogspot.com.br

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  5. Oi, td bem?
    Quando vi esse clipe fiquei arrepiada, é tão forte, cheio de críticas, referências que fiquei chocada, realmente nos faz refletir e MUITO.
    Beijos
    www.somosvisiveiseinfinitos.com.br

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  6. Ótimo clipe, já tinha visto no instagram diversos artistas falando, bem legal saber mais através do post! :)

    O Planeta Alternativo

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  7. Fiquei bem curiosa quando este clipee foi lançado. Está bem além de ser só uma música, mas trabalha muito a questão do racismo, de forma tão original. Eu indico um que vi com a mesma temática . Eu assisti recentemente um documentário que aborda essa tematica e me chamou muito a atenção: Diga o nome dela, A vida e morte de Sandra Bland, e fiquei muito impressionada, é muito bem feito e a história nos impacta e prende desde o início, tratando muito bem e sendo um dos melhores filmes sobre preconceito racial .Sempre me interesso muito por filmes porque eles tem o poder de nos fazer refletir sobre a sociedade de forma tão didática. Recomendo a todos.

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