sábado, 28 de março de 2020

O coronavírus e a pandemia do oportunismo



No início de fevereiro, com a megaoperação de repatriação de 34 brasileiros que viviam em Wuhan, na China, epicentro da doença coronavirus disease 2019 (Covid-19), o Brasil testemunhou o prenúncio de um drama que passaria a assombrá-lo dali em diante. Após ficarem quinze dias de quarentena numa base militar de Anápolis (GO) e testarem negativo para o vírus Sars-CoV-2 em três sucessivos exames clínicos, aqueles brasileiros puderam, finalmente, retornar aos seus estados de origem [1].

Passado o episódio, bastaram apenas mais dois dias para, em 25 de fevereiro, o Ministério da Saúde anunciar o primeiro caso de Covid-19 no Brasil: um homem que acabara de voltar da Itália, país que enfrentava, então, um surto da doença [2]. Um mês depois, já contando, segundo os registros oficiais, 2.201 casos confirmados e 46 mortes, números esses em ascensão diária, o Ministério reconheceu a transmissão comunitária da Covid-19 em todo o país, orientando os gestores nacionais a adotarem medidas para promover o distanciamento social e evitar aglomerações [3].

Há, contudo, uma segunda pandemia em curso, a qual, se não atacada, tem potencial para causar ainda mais estrago do que a do novo coronavírus. É que, nesse contexto atribulado, em meio à comoção social causada em torno do combate à Covid-19, o terreno é fértil para o surgimento de propostas notoriamente oportunistas. A mais recente, por exemplo, explora o desgaste que o governo, para aprovação da reforma da previdência, promoveu sobre a imagem dos servidores públicos para sugerir, covardemente, o confisco de até 50% dos respectivos salários [4].

Ainda mais esdrúxulo e perigoso é o PL 791/2020, sendo gestado na Câmara dos Deputados, que institui um comitê nacional para “chancelar” as contratações públicas relacionadas ao enfrentamento da pandemia [5]. De acordo com o projeto, os processos de contratação seriam submetidos à chancela monocrática de um Ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), designado pelo Presidente da Corte, e homologados pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ouvido previamente o Procurador-Geral da República. Numa só tacada, seriam completamente afastados os controles do Ministério Público de Contas da União, de todas as instâncias do Poder Judiciário abaixo do STF, dos demais Procuradores da República e dos auditores que compõem o corpo técnico do TCU, o que é flagrantemente inconstitucional e afronta diversos precedentes do próprio STF. Para se ter ideia do potencial dano dessa tresloucada proposta, basta lembrar que o montante envolvido nessas contratações será multibilionário [6].

Não raro, esse surto de oportunismo acaba se alastrando para a seara política, o que agrava ainda mais o quadro. No caso tupiniquim, os governadores de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Distrito Federal, que já externaram pretensões presidenciais, parecem querer antecipar, de maneira inconsequente, uma disputa eleitoral que deveria ocorrer somente em 2022. À frente de Estados cujas contas, em geral, já estão bastante comprometidas [7], esses governadores, alegando necessidade de promoção do isolamento social em função da Covid-19, decretaram a parada completa da atividade econômica, mandando fechar, inclusive, divisas e aeroportos, medida que, além de gerar pânico na população, implicará na quebra generalizada de empresas e no consequente agravamento do desemprego [8]. A ideia seria, futuramente, jogar esses problemas na conta do presidente Jair Bolsonaro, buscando, assim, inviabilizar a sua reeleição.

Como se viu, em tempos de pandemia, é sempre recomendável redobrar a atenção com relação ao surgimento desse outro vírus, o do oportunismo, igualmente contagioso. No apagar das luzes, membros imunodeficientes do Legislativo e do Executivo podem manifestar o principal sintoma dessa doença: uma vontade incontrolável de tentar emplacar propostas descabidas, absolutamente incogitáveis sob o manto da normalidade. E, se não se cuidar, o Judiciário, aglomerado ali na Praça dos Três Poderes, também corre o risco de se contaminar [9]. Saúde! J-J

Obs.: As opiniões do autor não constituem posicionamento institucional do TCU. 


Por: Regis Machado, auditor do Tribunal de Contas da União

2 comentários :

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