quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

De criado-mudo à mesa de cabeceira: 'Etna', 'Mobly' e 'Tok & Stock' transformam a expressão de um de seus móveis por ser considerado termo racista



No final do ano passado (20 de novembro) a Etna - empresa especializada em móveis para o lar - modificou o nome de um de seus objetos, o criado-mudo, durante o Dia da Consciência Negra. Segundo a empresa essa expressão é considerada racista e preconceituosa e foi substituída pela mesa de cabeceira.

Você sabe qual a origem da expressão e por que ela é considerada racista? Há muito tempo ela foi cunhada na sociedade para definir os móveis que ficavam nos cantos do lado da cama, em clara alusão aos escravos. 

Esse post tem o intuito de: desvendar os reais significados de criado-mudo; explicar o que significa mesa de cabeceira; fazer uma análise do vídeo da Etna a respeito da mudança; fazer uma pesquisa de como as principais lojas de móveis do Brasil tem chamado esse objeto; e, por último, falar de convenções sociais e como elas interferem no modo de pensar e agir da sociedade.


O que está em volta da expressão criado-mudo?


De acordo com o Wikipedia, o criado-mudo "é um pequeno móvel AUXILIAR usado para aparar objetos, geralmente colocado ao LADO da cama" (palavras em caixa alta serão retomadas mais a frente). E que objetos são aparados?! Copos d'água, abajures, caixa de fósforos, Bíblias e até mesmo penicos, como pode ser visto na imagem abaixo.



Criado-mudo também é chamado de bidé e velador pelo Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, de Antônio Joaquim de Macedo Soares, publicado em 1889. O criado-mudo pode ser de várias cores e materiais, com o tampo de mármore, gavetinha e prateleiras para guardar aparadores, como penico.  

Enfim, criado-mudo é formado por duas palavras: criado, por ser um móvel auxiliar; e silencioso, ou seja, mudo. Acontece que há uma problemática com a palavra. Em 1820, os escravos domésticos eram chamados de CRIADOS e passavam horas imóveis e MUDOS, ao LADO da cama do seu senhor. Desse modo, os escravos não tinham protagonismo, sendo colocados ao fundo, sem expressão, para AUXILIAR seus senhores seja com um copo d'água na mão ou segurando roupas. Ou seja, o serviço dos criados-mudos atualmente era desenvolvido no passado pelos escravos. 

Foi nessa época que foi criado um pequeno móvel para ficar próximo da cama, tendo a mesma função dos escravos. A mesinha, portanto, era chamada de criado-mudo (Até os dias de hoje, como veremos mais à frente), enquanto os escravos continuavam sendo chamados de escravos ou criados. 

Eder Prado, no blog Essencia, explicou o termo, associando à função de mordomo. Leia (com grifos):

"O termo se deve ao fato de que a mesa de cabeceira serve como auxiliador, portando objetos os quais não se pretende carregar. Tal função era cumprida por mordomos e criados entre pessoas ricas. Por ser um objeto inanimado e ter utilidade prática equivalente à de um mordomo, é chamado de criado-mudo."


O colaborador Thiago Nascimento fez uma analogia interessante entre o móvel e os escravos:

"O móvel geralmente fica parado no canto da parede. Talvez seja algo meio racista/preconceituoso porque os serventes/escravos há um tempo ficavam nos cantos, sem falar nada, só obedecendo."


O site Hypness apresentou 9 expressões populares com origens ligadas à escravidão, são elas: Tem caroço nesse angu, a dar com pau, disputar a nega, nas coxas, espírito de porco, para inglês ver, bucho cheio, meia tigela e lavei a égua. Sem perceber, falamos essas expressões, assim como a de criado-mudo, e reafirmamos convenções sociais e falas preconceituosas em nosso vocabulário. 


Mesa de cabeceira

Móvel que faz parte do mobiliário do quarto com utilidade específica a fim de facilitar as atividades cotidianas, como a de repousar e dormir. A expressão mesa de cabeceira é mais luxuosa que a de criado-mudo e significa, de acordo com sua terminologia, uma mesa que fica na cabeceira da cama.

O termo surgiu pela primeira vez em 1892 e era um móvel utilizado para esconder recipientes necessários para lords e ladys. 

Mesa de cabeceira em outros países é chamada de nightstand, night table, bedside table ou bed table tendo os mesmos significados.  


#criadomudonuncamais




No dia 20 de novembro de 2019 a Etna veiculou uma propaganda perguntando à anônimos como eles chamam o móvel que fica ao lado da cama, até revelarem - por meio de uma carta guardada em uma das gavetas do objeto - a origem nefasta do nome. Veja:





O vídeo foi finalizado com o seguinte comunicado (com grifos):


"A Etna está começando a abolir o termo criado-mudo de todas as suas lojas. Compartilhe essa história e motive outras pessoas a chamarem esse móvel de MESA DE CABECEIRA." 


Ainda em um texto explicativo a loja de móveis falou que 200 anos depois ainda se carrega termos racistas, sendo necessárias a mudança e a evolução. Para isso, a Etna ABOLIU o termo de seu site, redes sociais e lojas físicas. Não é mais possível encontrar o termo em seu site, como pode ser verificado nos prints abaixo:  






E as outras empresas?


Ao digitar criado mudo no Google já aparecem várias lojas vinculadas ao móvel, são elas: Casas Bahia, Magazine Luiza, Mobly, Dafiti, Lojas Americanas entre outras. 
















Isso significa que muitas lojas não se desvencilharam do termo ainda. A Madeira Madeira, ainda em janeiro de 2020, utiliza o termo (Constatei isso pois o site está em "saldão de janeiro"). Veja o print abaixo:





A Leroy Merlin, por sua vez, utiliza os dois termos, como pode ser verificado nas imagens abaixo:












Por outro lado, a Mobly e a Tok & Stock aboliram de vez o termo criado-mudo de suas páginas e lojas:

























Essa sintonia fora de órbita das lojas, demonstra em como é difícil se desvincilhar de um termo tão disseminado e conhecido. As chamadas convenções sociais. 



Convenções sociais




Por muitos anos, 200 anos, CONVENCIONOU-SE utilizar o termo criado-mudo para diferenciar dos criados humanos (Sim, a origem é racista e preconceituosa). Mudar de uma hora para a outra a forma como se fala não é tarefa fácil. Percebemos que existem lojas que não se desvencilharam do termo, como tem outras que usam as duas expressões tranquilamente.  

A Etna revolucionou o vocabulário de móveis, em pleno Dia da Consciência Negra. Corajosa, ela. 



É uma questão de costume. Fomos acostumados à chamar esse pequeno móvel assim, embora mesa de cabeceira seja mais bonito e elegante de falar. Retirar a expressão do vocabulário requer tempo e esforço. Se as lojas resolveram mudar o termo agora por uma questão social (Ou publicitária, que seja), é de aplaudir a atitude pela coragem. Quem sabe não esteja perto o tempo de convencionar mesa de cabeceira, ao ínves de criado-mudo. É aguardar, pois tudo pode mudar. J-J 


Por: Emerson Garcia

15 comentários :

  1. Super interessante toda a contextualização. Agora, esta questão de trocar o nome de uma peça do mobiliário em decorrencia desta paranóia ideológica já é demais. Mas enfim são os tempos. Outros virão em que tudo o que se diz e se faz hoje será banido também ... é o ciclo da história ...

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    Respostas
    1. Concordo com você. As convenções sociais mudam diariamente.

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  2. Desconhecia essa historia...interessante
    Abraço
    Kique

    Hoje em Caminhos Percorridos - Nova namorada do papá

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  3. Que loucura não. Interessante esta estória. Abraço!


    https://lucianootacianopensamentosolto.blogspot.com/

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  4. Oi Emerson, tudo bem?
    Eu adorei essas ações e acho que é super importante estarmos atentos ao peso que as palavras e expressões têm, para que não as usemos mais (ainda mais com tanta opção pra substituir).
    Beijos,

    Priih
    Infinitas Vidas

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  5. Exatamente isso, gosto sempre de visitar seu blog sempre tem algo novo para se aprender ou conhecer.
    -Geeky Freaky.

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  6. Em Portugal, o termo criado-mudo não existe, e, portanto não há ponta de racismo.
    A atitude da casa de móveis é de enaltecer.
    Um post mega completo e com o qual sempre aprendo.

    Até mais!

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    Respostas
    1. Me sinto lisonjeado por seu comentário. Como se chamam esses móveis aí em Portugal?

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  7. Por aqui achamos engraçado que no Brasil a mesa de cabeceira se chame criado mudo, porque é bem diferente de mesa de cabeceira. :)
    --
    O diário da Inês | Facebook | Instagram

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  8. Caramba que post incrível e que iniciativa incrível da loja que criou o vídeo. Eu realmente não vazia ideia das raízes racistas que esse termo traz. A partir de agora sempre falarei "mesa de cabeceira", não tem necessidade continuar usando um termo antiquado.

    Mandaram muito bem no post! Adorei

    www.estupefaca.com.br

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